Movimentos de resistência feminista e a reação do Estado brasileiro (2013-2022)
- Kolody, Andressa (UNICENTRO, UERJ)
Este ensaio busca compreender as dinâmicas de luta do movimento de mulheres, sua ação política e a resposta do Estado as mobilizações populares na última década no Brasil. Integra a pesquisa de doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob a orientação dos Professores Felipe Abranches Demier e Maria Inês Souza Bravo. A pesquisa analisa o recrudescimento e a permissibilidade violenta da reação do Estado brasileiro diante do potencial disruptivo das lutas sociais.
Conectadas a uma dinâmica internacional de ascensão dos movimentos feministas, as manifestações do movimento de mulheres ganharam destaque a partir das "Jornadas de Junho" em 2013, marcando o início de um novo ciclo que se desdobrou principalmente nas redes sociais (ARRUZA; BATTACHARYA; FRASER, 2019); (MATTOS, 2023).
A campanha “#Meu primeiro assédio” foi emblemática, denunciando o cotidiano de assédio sexual enfrentado por mulheres desde a infância. Originada como resposta a comentários machistas, pedófilos e ferinos dirigidos a uma competidora de 12 anos do Masterchef infantil brasileiro, a campanha rapidamente se tornou um canal para mulheres compartilharem suas experiências, recebendo 82.000 mensagens em quatro dias. A média de idade do primeiro abuso evidenciou a urgência de uma resposta mais ampla, destacando a necessidade de enfrentar a violência.
A partir de outubro de 2015, o movimento tomou as ruas em manifestações expressivas contra propostas conservadoras em discussão no Congresso Nacional, destacando-se o projeto de Eduardo Cunha, então deputado e presidente da casa. O referido projeto buscava dificultar o acesso ao abordo legal para mulheres vítimas de estupro. A tendência conservadora do Poder Legislativo brasileiro, influenciada por parlamentares evangélicos liderados por Cunha, levou as mulheres a não só reivindicar novos direitos, mas a lutar pela preservação dos já conquistados.
O projeto de lei de Cunha, acusado, entre outras coisas, de manter contas na Suíça alimentadas pelos subornos da Petrobras, simbolizava uma postura ultraconservadora e anti-direitos, sobretudo em relação às mulheres.
A mobilização "Fora Cunha!" reverberou nas manifestações do ano seguinte, desgastando politicamente o então presidente da Câmara e culminando em sua destituição e prisão. Esse movimento foi reconhecido como a "primavera das mulheres brasileiras", um marco inédito na história do país, indicando o protagonismo feminino na resistência.
Nos anos subsequentes, destacando-se especialmente no dia 8 de março, o movimento de mulheres permaneceu dinâmico, protagonizando lutas importantes. As mobilizações massivas do "Ele Não" durante a campanha eleitoral de 2018, continuaram desempenhando um papel crucial na resistência contra o neofascismo emergente no país. Esse movimento exemplifica o protagonismo feminino no debate político contra a violência e o preconceito presentes no discurso do então candidato Jair Bolsonaro. Articulado tanto no ambiente digital quanto nas ruas, o movimento foi uma resposta significativa à ameaça percebida no discurso e nas propostas de Bolsonaro.
Entretanto, desde as “Jornadas de Junho” de 2013 e em especial desde o golpe de 2016 o recrudescimento e a permissibilidade violenta contra lutas sociais escalaram vertiginosamente no Brasil, afetando também o movimento de mulheres. Essa tendência é uma consequência política de um longo período de crise estrutural do capital, que teve início nos países centrais na década de 1970, e que teve no neoliberalismo, a partir do início de 1980, uma resposta do capital.
Com implicações profundas nas dinâmicas econômicas, sociais e políticas, o modelo hegemônico de “restauração do capital” ganhou forças no Brasil a partir dos anos 1990. Desde então, o país tem vivido uma espécie de ajuste fiscal permanente, que teve início com o Plano Real e o Plano Diretor da Reforma do Estado, intensificando com o Novo Regime Fiscal e a Emenda Constitucional 95, após o estelionato eleitoral que se seguiu à re-eleição de Dilma Rousseff, e se aprofundou durante o governo neofascista de Bolsonaro que adotou um modelo de austeridade radical (BRAGA, 1996); (BEHRING, 2021).
Como elemento central, o Estado é requisitado a viabilizar a reprodução ampliada do capital, alterando o padrão de financiamento público, transferindo recursos para mãos privadas por meio do ajuste fiscal e das contrarreformas, intensificando a superexploração da força de trabalho (BEHRING, 2021); (MATTOS, 2020). Além do fortalecimento da função econômica, a função coercitiva do Estado se acentuou, resultando em uma nova qualidade estrutural marcada pelo aprofundamento da face penal do Estado e pela virada autoritária do controle político.
Essa segunda tendência, aponta para um profundo desiquilicro na combinação da força e do consenso. Ela incorpora tendências bonapartistas no interior da democracia. Isso abrange desde a hipertrofia dos aparelhos repressivos de Estado, a criminalização da pobreza e das formas de organização sócio-políticas das “classes perigosas”, até a assistencialização (MANDEL, [1972] 1982); (GRAMSCI, 2004); (NETTO, 2013); (BEHRING, 2021); (DEMIER, 2017; 2021).
Esse cenário destaca a importância de uma análise da reação do Estado diante das dinâmicas de luta do movimento de mulheres na conjuntura da última década, refletindo sobre sua incidência no tempo presente e o modus operandi do Estado diante da organização sócio-política.